quinta-feira, 24 de julho de 2008

Ela já se foi


Um elefante vai pisar em uma formiga... Quase! Assim é a saudade. O coração aperta até quando a gente acha que ele vai rachar. Aí, de repente, alivia. Mas também existe saudade sem cura, que vive para sempre. Vive para sempre porque houve morte. Morte de alguém querido, da felicidade que não volta, do momento inesquecível, morte daquilo que foi.

Mas a saudade dela era estranha, se alimentava do futuro, de tudo que nem havia vivido. Era como se a convicção da conquista fosse tão grande, que transformava todo porvir em passado. O coração já apertava pensando nos últimos momentos deles antes dela partir. Sentia saudades das esquinas que continuava passando todos os dias. Pensava, com saudade, nas rotineiras conversas que tinha com a mãe, antes de dormir. Seriam as últimas?

Deitada na cama, tentava prever como seria seu futuro colchão. Dificilmente encontraria molas tão confortáveis quanto aquelas. Mas isso não importa, a nova vida, noutro lugar, faria com que todos os poréns valessem a pena. Disso ela tinha convicção, que também era acompanhada de um certo medo, normal, penso eu.

Nunca havia morado longe dos pais e, apesar de sempre ter almejado o mundo, sempre foi muito provinciana. Saiu poucas vezes do Brasil, fez viagens menos ousadas do que desejava. Nunca pulou de uma pedra de cachoeira, pois sua mãe lhe dizia que não. Jamais deu ou pegou carona com estranhos, temendo seqüestros, estupros ou outras maldades possíveis.

Sua ousadia sempre foi milimetricamente calculada. Elaborava estratégias, táticas, tudo para alcançar a meta proposta. E conseguia, foi sempre assim. Desta vez, não sabia se sua partida seria em dias, meses ou anos. Mas já sentia saudades de tudo.

terça-feira, 22 de julho de 2008

Sem amor, não

Imagine só, meu Deus, se amar fosse proibido. Pra resolver a questão, só colocando grade no mundo inteiro. Ia mãe, filho, vó, sobrinho, torcida, cachorro, ia pai, namorado, esposa, marido, ia irmã, ia amigo, ia desconhecido, padre, poeta, ia até polícia pra prisão. Sem cabimento, meu Deus, proibir o amor seria proibir sorriso, suspiro, beijo de verdade, brilho no olho, álbum de figurinha, toque afetuoso, clichê, colo, aconchego, acalento, lágrima seguida de outro sorriso, saudade e até aquilo que não se explica.

Acaba o amor acaba Vinicíus, acaba Tom, Chico, William, acaba Cartola, Castro, Carlos, Guimarães, Olavo, verso, prosa, romance, acaba melodia, letra, música. Acaba Cinderela, Bela Adormecida, o príncipe, acaba até conto de fada. Acaba amor, adeus dor de amor. Mundo sem amor, meu Deus, é mundo sem azul. Pois o amor colore e colore até de vermelho. Amor arrepia, amor conforta, amor é de graça, amor não escolhe, amor se cria, amor cultiva, amor nasce, assim, de repente, amor surpreende, amor perdoa, amor alimenta, amor chega e vai, amor chega e fica...

Ai, meu Deus, amor é uma coisa boa que acontece dentro da gente.

segunda-feira, 21 de julho de 2008

O mundo delas

Dali o mundo parecia gigante. E elas se sentiam donas daquilo tudo, parte gigante do mundo. Lugar estratégico, só faltava estar escrito “Aqui só entram os bons”. Ou melhor, as duas. Estar ali era uma conquista diária, resultado de um trabalho de mestre que mesclava persuasão e manha. E isto as irmãs tinham de sobra. Não por serem meninas criadas com vó, mas por esperteza. “Vocês duas, de novo aí? Suas danadas!”. Não titubeavam em responder em coro, daquele jeito bem mole: “Ahh, vóóó, deixaaaa”.

Como previsto no plano, ela acabava deixando. Não que fosse uma vó quedêxatudo, mas via que aquela pequena parte da cozinha, também pequena, era a diversão para as netas, além, é claro, dos mergulhos na banheira, das expedições dentro do guarda-roupa, dos tobogãs no corrimão da escada, da gangorra feita de cadeira de balanço, das horas de embelezamento em frente à penteadeira e de todas as outras invencionices.

Mas aquele lugar era especial, dali o mundo parecia gigante. As pernas da vovó ficavam enormes, cumpridas que elas só. Sem armários para acabar com festa, tinham somente que disputar espaço, vez em quando, com uma vasilha ou outra. Mas o normal mesmo era ter espaço de sobra. Porque ali era uma parte gigante do mundo.

Dava para ver o fogão logo em frente e ainda controlar o movimento do corredor mais adiante. Dava para escutar conversa de gente grande. Dava para ganhar no pique-esconde. Dava para saber a hora exata em que podiam atacar a panela de angu. Dava até para disputar corrida de carrinho de apoiar botijão, conhece?

Hoje, a vó tem a cabeça esquecida, nem sabe mais como fazer angu. Às vezes, nem sabe também qual é o nome das duas. Hoje, as duas nem cabem mais ali. Mas só de pensarem “nali” cresce uma emoção que não cabe. Pois debaixo da pia da cozinha é uma parte gigante do mundo da infância delas.